sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Memória musical.


Não sei como funciona a memória das outras pessoas normais, não que eu seja maluco, mas a minha, precisa de um dispositivo, alguma coisa que faça as engrenagens se moverem, um quadro, uma estátua, uma estrutura, um simples ladrilho, tudo isso pode fazer a pessoa voltar no tempo e rever sentimentos que já havia esquecido a muitos.
Mas, meu dispositivo preferido é a música, sem ela eu não escrevo nem um título da história e isso começou cedo, pra se ter uma ideia, me lembro da música que tocava, quando eu e meu irmão saímos da viatura e entramos no prédio da delegacia, isso foi o começo da aventura nos orfanatos, não me lembro dos rostos dos policiais que nos carregavam nos colos, lembro-me do som que os coturnos faziam em contato com o piso e uma música vinha do rádio da atendente era Olho d'água de Milton Nascimento, dali pra frente, em épocas de mudança, sempre tem uma canção do Bituca.
Quando criança sabia distinguir a cultura de um adulto por seu gosto musical, o estranho é que isso não me tornou músico.
Um dia conversando com o Jordão, disse que tinha inveja do fato de ele ser cantor e músico, ele bateu no meu ombro e disse calmamente:
_Não liga não, você tem bom gosto e isso é um dom.
Só muito tempo depois é que as palavras do Jordão fizeram sentido.
Vai o tempo, vai... Na juventude, me vi numa dúvida que corroía a mente...Gostava de Elomar Figueira que, pra quem não sabe, é violeiro e cantador, lá pros lados do norte da Bahia.
Como podia um guri nascido e criado em São Paulo, gostar de um estilo de música, que nem na Bahia é conhecida?
Por muito tempo me vi nesse drama, quando ouvia o som da viola e a voz do cantor, viajava sem saber pra onde, atribui o mistério à vida passadas e quase me esqueci.
Num belo dia, passando pela rua de trás da Casa da Infância, vi o enorme portão e o gatilho acionou, deu até tremedeira e tudo voltou.
Numa tarde, quase noite, fui com a Sonia à garagem, ela queria saber se o Juventino tinha cola de sapateiro, pra consertar o salto do sapato dela.
O Juventino era um crioulo alto, bom... Todo adulto era alto pra mim, tirando a madre Da Glória, que era só uns dois dedos maior que os guris.
A garagem era uma bagunça, tinha de tudo e tudo empilhado, verdadeiro paraíso pra uma criança.
Já estava trocado o Juventino, preparado pra ir embora, mas a Sonia era muito linda, do tipo que homem nenhum deixa na mão e o Juventino era o nosso herói, jamais deixaria de atender um pedido desses.
Pra não se sujar, me levantou e jogou-me pra cima de uma pilha de materiais, numa prateleira feita de madeira, lá embaixo passou a me orientar onde eu deveria procurar, no escuro, bati numa coisa que caiu e emitiu um som de cordas, imediatamente o homem gritou:
_Ai, minha viola. Falou isso quase chorando.
Achei a lata de cola e ele mandou que eu descesse a viola junto, pulei e ele me aparou, me pôs no chão e verificou o instrumento, estava bem.
No claro pude perceber que ele não tinha acabamento, dessas violas feitas à mão, que se vendiam em feiras livres, passou os dedos nas cordas, pra sentir a afinação.
_Você toca Juventino?Perguntou-lhe a moça.
_Muito pouco.
_Toca alguma coisa pra mim.
O homem esqueceu que estava de saída, sentou em cima da mesa e dedilhou uma coisa que eu nunca tinha ouvido antes, pra mim foi um choque, como um homem rústico, de mãos calejadas, pudesse produzir uma coisa tão linda daquelas e letra triste, quase um choro, de tão triste.

Fascinada, a Sonia, sempre que podia me apanhava e descia pra garagem, pra mais um show do Juventino.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Meu melhor amigo (parte 3)


Como eu disse, fazíamos parte de uma mesma moeda, diferentes, mas sem antagonismos e tínhamos assuntos pra toda hora, muitas vezes, em hora de repouso, ficávamos com a toalha de mão nos rostos, fazendo que dormissem e continuávamos cochichando, posto que fossem vizinhos de cama.
Algumas vezes virávamos um trio, quando batíamos nas latas penduradas na tela que dividia os pátios, fazíamos o som e o André cantava os sambas mais lindos desse mundo.
Em sala de aula, desde o jardim de infância, nossa companheira era a Marta Yoshie, até que tentaram nos separar dela, mas ela ficou muito triste, a ponto do pai dela implorar que nos deixassem junto, era um trio estranho aquele, numa sexta-feira, ao final da aula, o pai dela nos levou pra um passeio, ela ia completar nove anos no domingo, passamos esses dias na casa dela e ainda que fosse no Cambuci, era uma réplica das casas do Japão, com jardins e santuários.
Avisados com antecedência, os convidados trouxeram presentes pra aniversariante e pros amiguinhos dela, que coincidentemente, aniversariavam na mesma semana.
Mas, via de regra, desde quando chegamos não nos apartamos mais e a dupla era chamada pelo nome e o sobrenome, geralmente quem aprontava era ele, mas eu era o maior, meu nome vinha em primeiro na hora do grito:
_NILTON E FERNANDINHO! E, lá vinha o castigo, metade pra cada.
Eu não tinha visitas, a mãe dele trazia "bode" pra dois, no caso de recomendações, ela fazia pra mim, pois sabia que ele fatalmente esqueceria.
Um dia, com a desculpa de resgatar uma bola, subimos naquela laje que tem, entre a sala de aula e o pátio, como a moça, ocupada com os outros meninos se distraiu, fomos andando, voltando os pátios agachados, chegamos ao Menino Jesus, havia ali duas linhas de arames farpados, com facilidade pulamos pra rua, fizemos a volta no quarteirão e chegamos à portaria.
Todo mundo foi chamado, a Olga foi acusada de ser negligente e se defendia de canto de olhos dava pra sentir que ela queria nos esganar, a madre Márcia queria o pescoço de alguém, menos os nossos, a madre Da Glória já nos havia presenteado com seus famosos beliscões, os meninos foram trazidos pela Olga e nos olhavam com olhos de cumplicidade e admiração e com certa pena, já que se se falava em desinternação ou transferência.
De cabeças baixas, esperamos e torcemos por um milagre, de frente pro Fernandinho, pude ver que, a rampa estava iluminada de sol, um vento fazia o véu de a madre Brasil esvoaçar, e não tive mais medo de nada, ela entrou no saguão e o saguão se iluminou, em vezes, dava a impressão que ela era acompanhada de um batalhão de anjos.
Caminhou em nossa direção, ficou no meio de nós e pousou as mãos em nossas cabeças e, com a naturalidade de quem educa disse:
_É logico que eles ultrapassaram os limites, mas voltaram. Se pularam é por que estava fácil, se fossem outros meninos poderia acontecer o pior.
E resolveu tudo, o Juventino consertou a falha na segurança e, isso não evitou o castigo, ficamos sem ir ao Zoológico.

Mas, quem disse que a dupla não se divertiu na Casa de Infância vazia?

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Meu melhor amigo (parte 2)


Uma grande amizade começa sempre sem ser forçada, ela é imposta pela ocasião e vai crescendo, pra nunca mais morrer.
Já havia completado dois anos, desde a tragédia que se abatera na minha família, havia sido transferido do Instituto Sampaio Viana pra essa nova casa, com o tempo, peguei o habito de chamar orfanato de casa e, convenientemente, esse lar tinha o nome de Casa da Infância.
Era 1970 e eu completaria quatro anos de vida, a vida já tinha me mostrado o pior das tempestades e eu havíamos sobrevivido a ela, no começo eu tinha me debatido, deixado à tristeza ganhar e vi que isso me afogava mais e mais.
  Num determinado ponto, como um naufrago, submergi a superfície, respirei e senti o ar de lá e gostei, resolvi boiar na água e deixar a correnteza me levar.
  Enquanto esperava na portaria as pessoas resolverem a papelada da internação, uma freira passou no corredor e me viu, ajoelhou-se na minha frente e percebendo a minha aflição, sem mais nem menos, abraçou-me, levantando-me da cadeira.
  Lá em cima, suspenso no colo dela, como quem já havia se esquecido do carinho, senti a paz que ha muito tempo não sentira mais, encostei a cabeça do ombro dela e chorei... Agora, com 50 anos, lembro o momento e as lagrimas voltaram.
  Momentos depois, já afeito do momento, olho pro grande saguão e vejo a claridade do ambiente, muito diferente do lugar de onde eu vinha, no escritório, a madre da Glória ainda discutia a minha internação, a madre Brasil havia se sentado ao meu lado e segurava a minha mão, a manhã jogava um sol no meio do saguão, através da porta de vidros.
  Essa mesma porta é aberta pela moça da recepção, aprecem duas figuras, uma senhora com jeito de sofrida e seu filho que, sabendo que ia ficar só, chorava.
  A madre Brasil levantou-se, mas, não largou a minha mão e fomos assim, encontrar os recém-chegados, ainda segurando a minha mão, ajoelhou-se diante do guri, que era mais baixo que eu, pôs-se a acalma-lo e disse que ele teria vários amigos, apontou pra mim e disse que eu seria o primeiro. Olhamo-nos e eu estendi-lhe a mão, ele retribuiu, ainda soluçava.
  Dai pra frente, quem via um, procurava o outro... a gente parafraseava os "Originais do Samba “e nos denominava-nos de a corda e a caçamba, as freiras e as moças preferiam nos chamar de dupla diabólica.
  Num passeio a Serra da Mantiqueira, subimos numa arvore e nos perdemos do resto do grupo, era noite fechada, quando os bombeiros nos acharam, ela estranharam a nossa tranquilidade diante do perigo, acabou que, passamos a noite no batalhão e voltamos no dia seguinte como heróis.
  Diferentes em tudo, eu era introspectivo e ele era solto e é claro que a habilidade no esporte veio primeiro pra ele, o Fernandinho era um malabarista da bola, isso lhe dava o direito de escolher o time, a primeira escolha era sempre eu.
  Fomos fazer um jogo de amizade, que em toda época do aniversário do colégio Catarina Labor é, a Casa da Infância era o convidado.
E era sempre a mesma história, tendo o colégio anfitrião meninos mais velha, a derrota era certa sempre e participávamos do jogo por participar e íamos pro resto da festa, ou seja, muita comida e doces.
  Nessa ocasião a coisa mudou, quando fazíamos as filas pra os comprimentos habituais, um dos meninos do Catarina passou do lado do Fernandinho e sorriu da pequena estatura dele, ao fazê-lo, passou a mão em sua cabeça, como se afagasse um bebê.
  Ah, o macaquinho virou o cão na quadra, o menino grande tomou a bola entre as pernas seis vezes seguidas, a cada uma delas a torcida das meninas gritava Olé. Não restou alternativa, a não ser sair de quadra chorando, nesse instante já se configurava a nossa vitória, a madre Dolores, constrangida, queria consertar as coisas, já que o Fernandinho continuava arrasador, fazia gols e olhava desafiador pro banco de reservas. Tirou o Sebastião do gol e deu a camisa pra ele e aí ficou pior, o macaquinho fechou o gol.

Era uma aliança selada, sem protagonismos, dois guris tentando ser felizes num mundo governado por pessoas tristes, aprendi as letras primeiro e as ensinei pra ele, sempre que eu queria calma pra ler, vinha ele brincar, quando eu conseguia ler, tinha que contar pra ele a minha impressão e, virei contador de histórias.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Coisas de criança.


Dia desses, pesquisando na internet descobri que a energia elétrica que era distribuída nas casas nos anos 70, era muito maior que a carga de hoje.
Isso me remeteu aos tempos da Casa de Infância, uma brincadeira que o avô de hoje, torce pra que nenhuma criança faça.
O pátio do São Pedro era o penúltimo e correspondia à terceira - série do primário e então, me vem à certeza de que estamos no ano de 1975.

Em breve, vamos ao último ano, no pátio do São José e aos cuidados da Margarida, mas estamos aos cuidados da Olga, que era loura, quero quer que se tratasse de uma mulher bonita, mas, memória de criança confunde beleza com caráter, então, se fosse o caso, a beleza física dela jamais suplantaria a ruindade da alma dela e, a Olga estava mais pra bruxa que pra princesa.
Apos a janta, recolhíamos os pratos e talheres, o carrinho de metal os transportava de volta para a cozinha, já estávamos vestidos nos pijamas.
No fundo do refeitório, depois do limite das mesas, havia um espaço, uma estante chumbada à parede esquerda, numa altura de 1 metro e meio, acondicionava uma televisão de 14 polegadas.
No chão, entre a parede do fundo e as mesas, era o justo local onde quatro fileiras de meninos se sentavam voltados pra televisão, primeiro a novela das 18h00min horas e em seguida vinha à tv Record, os filmes da "Sessão Bang Bang.”
Muitas vezes, as moças aproveitavam que estávamos entretidos com a programação e saíam pra conversar fora do refeitório.
Sentados no chão, os meninos se davam as mãos, formando uma corrente humana, nas costas do último meninos do canto havia uma tomada desocupada, esse último menino enfiava um clipe retorcido com duas pontas, nos dois buracos...
Choque geral e depois as risadas.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

O teatro

Entrando na portaria, podia se ver no fim do saguão, a porta vidrada que levava à rampa, que conduzia ao outro prédio conjugado.

À direita, uma sala de escritório com guichê, à esquerda um balcão... do lado do escritório um corredor com duas salas por lado, as duas salas do fundo tinham janelas que davam no pátio do São José, ao lado do corredor uma escada conduzia à enfermaria, no vão, ao lado da escada, fora convertido em depósito, continuando o movimento anti-horário, se via um banheiro e ao lado, uma porta dupla enorme dava acesso ao salão.
Que era usado para encenar as peças dos alunos ou receber as peças de fora, as vezes era transformado em cinema, as cortinas eram substituídas por uma tela branca e pronto...das cadeiras de marfinite,( que se desmontavam) se podia assistir os filmes do Chaplin e uma vasta seleção de desenhos, mesmo aqueles filmes de massinha.
Me lembro do show do carismático Jair Rodrigues e do hilário Silvio Brito, a peça "Os saltimbancos" e várias apresentações de bailarinas.
Mas o que eu me lembro com uma nitidez assombrosa é do Tio Bill, era a banda de um homem só. Um mulato d'uns 30 a 40 anos e bem apessoado (segundo a opinião das moças), que tocava bumbo, prato violão, saxofone, caixa, gaita e lata. Apresentava-se com um paletó vermelho com o emblema da Coca Cola que patrocinava o show e dava os refrigerantes, brinquedos e gibis de super-heróis.
Todo ano, na última semana do ano, o Tio Bill dava o ar da sua graça, tocava, cantava e representava. Pra ir embora, tinha que desgrudar os meninos dele.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

O padre Zézinho

 E cá estou eu, me desculpando de novo...
Na postagem que escrevi sobre a imagem do sagrado coração, disse que se tratava de uma sala, o local que tinha o quadro e o relógio antigo, pois bem, não era uma sala e sim um hall, apenas uma passagem pra quem vinha da rampa da portaria em direção à cozinha e tinha acesso ao corredor dos pátios, à direita havia uma lance de escadas que subiam pro hall das moças e a que descia pra lavanderia e rouparia.
Claro que o leitor vai entender que as memórias são de uma criança e, sendo assim a lembrança geográfica é meio dúbia.
Esse hall era, na maioria das vezes, vazio. Tirando as ocasiões que tinham visitantes, nessas ocasiões, as mesas eram postas e virava um refeitório, entre os visitantes mais ilustres que almoçavam a comida das "vovozinhas", estava o padre Zezinho e, ainda que ele fosse já à época um recordista de venda, era uma simpatia de pessoa.
Me lembro dele tocando violão, depois do almoço, a cada nota esticava as cordas com os dedos, as unhas produziam um instante metálico peculiar, mania de que toca guitarra elétrica.
Quando estava acompanhado da Madre da Glória, que era austera, apenas conversava, quando estava com a Madre Dolores, a espanhola, ria muito e cantava com gosto. Quando ele ainda estava compondo "Maria de Nazaré", teve o acompanhamento também da Madre Brasil no coral, portanto, antes de a música ser cantada na igreja da Imaculada Conceição, os guris já a sabiam de cabo a rabo.
Mas, a música que me chamou atenção mesmo foi "A barca", os acordes dessa canção me marcaram mesmo. Estranhamente, ele só há gravou muitos anos mais tarde.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

A primeira vez que eu vi o mar

Nasci na capital de São Paulo e a minha primeira infância foi passada num colégio de freiras no Ipiranga.
Não conhecia a leitura, mas conhecia o mar dos versos de Vicente de Carvalho, que a irmã Dolores recitava e das canções de Dorival Caymmi.
No mês de Janeiro, ficávamos acampados em Bertioga, numa escola municipal, no primeiro dia, mal o sol nascia, as freiras nos levaram para a praia, era, na época, uma praia vazia e antes de vermos o mar, já ouvíamos o seu barulho, com cinco anos eu tive medo.
Quando pisei na areia, vi aquela imensidão, lá longe o sol principiava a subida e parecia pequeno, diante da imensidão daquele azul.
Os outros meninos já estavam dentro d'água e eu olhava tudo com medo, seria redundância dizer que eu me sentia pequeno, já que, eu era realmente pequeno, uma onda veio me buscar, deixei que ela cobrisse os meus pés, estava gelada, me afastei.
No horizonte, o sol já subia metade do corpo, a minha pouca idade tentava entender, aquilo tudo era muito maior que os versos do poeta ou a música, a irmã Dolores chegou perto e pegou minha mão:
_Mar, esse é o Nilton... Nilton, esse é o mar.
Foi andando comigo pra dentro da água, quando a água já chegava à altura do seu joelho, parou e ficou esperando que eu soltasse a sua mão, soltei e fui ter com os outros guris.

Lá pro meio dia, não tinha ninguém que me tirasse da água.

As Freiras.



Criança costuma chamar de MADRE... que, no bom espanhol, quer lembrar MÃE.
No meu caso isso é verdadeiro, na ausência da minha, eu tive várias:

A madre Dolores Brasil era a mais querida entre todas, sorriso sincero e um jeito franco de viver, brincava e ensinava, beijava e pegava no colo, brincava e se impunha. Naquele tempo de ditadura, que os adultos tinham um olhar de medo, ela era forte, como se o seu sobrenome fosse sua força.
Só vi a madre Brasil chorar uma vez, foi naquela final do campeonato brasileiro de 1976, mesmo vendo em câmera lenta, a confirmação do gol do Inter gritava que o Corinthians havia sido roubado... Uma semanas antes, ela havia levado os meninos pra esperar os heróis, que voltavam do Maracanã, passar no carro de bombeiros na Avenida Nazaré.
A madre Lodir era vietnamita, além de falar muito pouco do português era arredia e dava impressão de uma profunda melancolia. As pessoas diziam que isso se devia aos traumas da guerra e, (aqui tinha uma grande contradição), se para muitos, a inabilidade social lhe trazia o silêncio, em silêncio, ela passava o dia cuidando do jardim e da enorme cachorra que ficava na garagem e atendia pelo nome de Kirikiki. Da raça pastor alemão, a cadela só atendia a ela.
Tinha uma gruta no jardim, quem saísse do saguão da portaria podia visualiza-la, logo que entrava na passarela que levava ao outro prédio, lá pras 18:00 horas (religiosamente) a madre Lodir ia acender a luz que iluminava a santa, a gruta passava a noite num tom azul.

As freiras 2


A madre enfermeira era francesa, bem bonachona e sorria um riso grave e complacente, na hora de aplicar uma injeção fazia um biquinho e soltava um sshhhhhh... alguém desavisado pensaria que ela estava exigindo silêncio, mas não, o chiado era um cacoete mesmo.

Foi enfermeira na segunda guerra, na mesa do consultório havia uma foto dela jovem, vestida de habito e chutando uma bola, num acampamento aliado em Monte Castelo. Contava historias ótimas de sua terra e mesmo, quando narrava sobre a guerra, nunca carregava nas tintas feito uma pessoa que sabe que todo pesadelo acaba.
Não foi só a grande fé que tenho na humanidade que eu herdei dessa senhora, ela me deu uma edição do "O pequeno príncipe", dai em diante, meus escritores me iluminaram.
A madre Maria Mourão era mineira, mulata e muito jovem e eu gostava muito dela, em algumas ocasiões, quando eu aprontava uma boa, as pessoas recorriam a ela, ela vinha com ares graves e me passava um sermão, longe dos olhos das outras freiras me punha no colo e dizia que não tinha sido nada e me aconselhava a viver bem.
Varias vezes, em épocas de festas, me levava pra casa de seus familiares em Minas, quando passeávamos pela cidade e ela não usava o habito, dizia pros moradores que era minha mãe.
A madre Denise, era na verdade uma noviça tinha uns vinte anos.
Era a catequizadora, tinha um jeito especial de ensinar as coisas da bíblia, sem impor, contava as passagens sentadas, com as pernas cruzadas e o violão no colo, muitas vezes ela se empolgava e a música sacra virava bossa nova, não fosse o seu habito marrom, ela parecia mais uma hippie.
Fazia faculdade e era também a psicóloga do colégio, quando ia fazer uma avaliação e o menino se mostrava arredio, me mandava chamar, eu chegava ao teatro, à madre no canto com a prancheta na mão, geralmente eu pegava uma daquelas cadeiras de marfinite, virava ela com os pés pra cima e a cadeira virava um carrinho, punha o guri sentado nela e empurrava, bastavam uns segundo e pronto... um sorriso e o menino começava a brincar, sentada na sua cadeira a madre podia analisar o perfil dele, por esse serviço eu só cobrava um pacote de bolacha recheada.
A madre Denise foi a pessoa que disse que eu seria professor.
_Professor de Historia, irmã ????
_Duvido do jeito que você é atentado, é bem capaz de ser de Educação Física.
AH, boca abençoada.

Meu melhor amigo. (primeira parte)

Cheguei à Casa de Infância em 1970, tinha quatro anos de idade e antes passei um ano no Sampaio Viana, meu irmão fora deixado numa maternidade, pois era ainda de colo. Da copa de 70 me lembro de pouco, passei o ano todo aborrecendo as freiras pra que elas dessem conta de trazer o meu irmão.
Numa tarde, a madre Brasil me levou pra portaria, dizendo que a partir daquela data ela iria poder dormir tranquila, na portaria estava o meu irmãozinho, que nem idade tinha para estar lá, acabou virando o xodó das freiras e das moças. Hoje eu sei que, se não fosse isso, ele teria sido adotado por alguma família, provavelmente jamais nos veríamos de novo.
Mas, nesse primeiro ano conheci o Fernandinho, que tinha o apelido de macaquinho e, em termos de natureza, era o oposto de mim.
De pequena estatura, tinha mesmo a habilidade de um primata, subia na tela do pátio e pulava no lado dos mais velhos, provocava uma briga e voltava rindo e antes que as moças se dessem conta do que havia acontecido.
Eu era retraído e contemplativo, sentava na beira da alvenaria da piscina e ficava olhando os meninos na brincando na gaiola, logo vinha o amigo com duas espadas feitas de jornal na mão e dizia:
_Essa é a sua, vamos tirar os piratas do nosso navio.
Cruzávamos as espadas e corríamos em direção à gaiola, digo, navio... e assim começava mais uma guerra.
Por sermos tão amigos, juntos, formávamos uma pessoa só, na hora das broncas os nomes vinham sempre juntos, como se Nilton e Fernandinho fossem nome e sobrenome de uma pessoa.
Nas horas de recreio, quando o recreio era na quadra, assim que a Cenira se distraia, subíamos na seringueira e sentávamos em seus longos galhos, olhando a Avenida Nazareth, ficávamos apreciando os carros que passavam:
_O vermelho é meu, o azul é seu... se o carro fosse um DKV, era sempre do outro.
Ficávamos ali por muito tempo, mas, assim que a moça percebia a nossa ausência, vinha pro pé da árvore e passava a gritar o nome e sobrenome e o castigo era certo.
Sempre dividíamos os castigos, numa tarde de inverno, pra que a paz reinasse entre os meninos, a Margarida nos deixou de castigo naquela salinha que ficava no canto esquerdo da quadra e trancou a porta, passamos pela janela e descobrimos que dava no fundo do teatro, na parte embaixo do palco.
Todas as roupas, as fantasias e instrumentos usados nas peças faziam daquele canto mal iluminado um país de sonho, depois disso, fazíamos sempre bagunça a espera do castigo.
Além dos castigos, dividíamos as cintadas e é claro que, não podia ser diferente, sempre que um via o outro chorando, desandava a rir.
Um dia a Olga resolveu nos repreender no lavatório, levantou o chinelo e partiu em nossa direção, com largo espaço, cada um correu numa direção, batia na parede e voltava na direção oposta, a Olga corria pra um lado e não conseguia pegar e partia para outro. Com o chinelo levantado, tentava alcançar os meninos e nada...os outros meninos viam tudo da porta do dormitório e riam muito. A Olga que era muito branca ficou vermelha e arfava de cansada, os meninos continuavam a correr e a pular com o apoio da torcida, a Olga se deixou cair no chão e gritou:
_Vão embora, suas pestes.
Na festa de São João, fizeram do mastro da bandeira da quadra, o pau de sebo.
Se subir numa árvore já é difícil, imagine subir num ferro besuntado, na ponta havia um enorme saco plástico cheio de brinquedo e milhares de doces. Eu nem tentei, os adultos e as crianças se revessavam na tentativa, perguntei pro Fernandinho se ele não ia tentar, ele deu de ombros e disse que depois iria, sem pressa. Como tínhamos tíquetes pra gastar na festa, fomos comer e brincar nas barracas, de quando em quando uma pessoa se arriscava a subir e o mesmo resultado... nada.
Assim que se acabaram os tíquetes o Fernandinho me disse:
_Vá e fique na gruta.
Disse isso e partiu na direção do pau de sebo, assim que todos viram que ele iria tentar subir, fizeram um cordão humano em volta, eu que já sabia o que ia acontecer, fiquei fora do cordão e rindo, por antecipação.
O Fernandinho pegou um saco de estopa e amarrou-o na cintura, com a habilidade que justificava o apelido, subiu num lance só, lá em cima pegou o enorme saco e o segurou no ombro, com a outra mão soltou a estopa e a jogou nas penas, pra que o sebo não a sujasse, escorregou.

Ao chegar ao chão, viu que todos o rodeavam, todo mundo queria um pedaço da glória, correu, todos o seguiram em direção à lavanderia, quando todos chegaram à porta de vidro, iniciou uma corrida na direção oposta, rumo à rampa da portaria, na entrada da portaria jogou o saco no jardim e se jogou, quando as crianças que o seguiam não o viram subiram a rampa que levava ao refeitório, cá embaixo nos acabamos nas guloseimas e dividimos os brinquedos.