Não sei como funciona a memória das outras pessoas normais, não que eu seja maluco, mas a minha, precisa de um dispositivo, alguma coisa que faça as engrenagens se moverem, um quadro, uma estátua, uma estrutura, um simples ladrilho, tudo isso pode fazer a pessoa voltar no tempo e rever sentimentos que já havia esquecido a muitos.
Mas, meu dispositivo preferido é a música, sem ela eu não
escrevo nem um título da história e isso começou cedo, pra se ter uma ideia, me
lembro da música que tocava, quando eu e meu irmão saímos da viatura e entramos
no prédio da delegacia, isso foi o começo da aventura nos orfanatos, não me
lembro dos rostos dos policiais que nos carregavam nos colos, lembro-me do som
que os coturnos faziam em contato com o piso e uma música vinha do rádio da
atendente era Olho d'água de Milton Nascimento, dali pra frente, em épocas de
mudança, sempre tem uma canção do Bituca.
Quando criança sabia distinguir a cultura de um adulto por
seu gosto musical, o estranho é que isso não me tornou músico.
Um dia conversando com o Jordão, disse que tinha inveja do
fato de ele ser cantor e músico, ele bateu no meu ombro e disse calmamente:
_Não liga não, você tem bom gosto e isso é um dom.
Só muito tempo depois é que as palavras do Jordão fizeram
sentido.
Vai o tempo, vai... Na juventude, me vi numa dúvida que
corroía a mente...Gostava de Elomar Figueira que, pra quem não sabe, é violeiro
e cantador, lá pros lados do norte da Bahia.
Como podia um guri nascido e criado em São Paulo, gostar de
um estilo de música, que nem na Bahia é conhecida?
Por muito tempo me vi nesse drama, quando ouvia o som da
viola e a voz do cantor, viajava sem saber pra onde, atribui o mistério à vida
passadas e quase me esqueci.
Num belo dia, passando pela rua de trás da Casa da Infância,
vi o enorme portão e o gatilho acionou, deu até tremedeira e tudo voltou.
Numa tarde, quase noite, fui com a Sonia à garagem, ela
queria saber se o Juventino tinha cola de sapateiro, pra consertar o salto do
sapato dela.
O Juventino era um crioulo alto, bom... Todo adulto era alto
pra mim, tirando a madre Da Glória, que era só uns dois dedos maior que os
guris.
A garagem era uma bagunça, tinha de tudo e tudo empilhado,
verdadeiro paraíso pra uma criança.
Já estava trocado o Juventino, preparado pra ir embora, mas a
Sonia era muito linda, do tipo que homem nenhum deixa na mão e o Juventino era
o nosso herói, jamais deixaria de atender um pedido desses.
Pra não se sujar, me levantou e jogou-me pra cima de uma
pilha de materiais, numa prateleira feita de madeira, lá embaixo passou a me
orientar onde eu deveria procurar, no escuro, bati numa coisa que caiu e emitiu
um som de cordas, imediatamente o homem gritou:
_Ai, minha viola. Falou isso quase chorando.
Achei a lata de cola e ele mandou que eu descesse a viola
junto, pulei e ele me aparou, me pôs no chão e verificou o instrumento, estava
bem.
No claro pude perceber que ele não tinha acabamento, dessas
violas feitas à mão, que se vendiam em feiras livres, passou os dedos nas
cordas, pra sentir a afinação.
_Você toca Juventino?Perguntou-lhe a moça.
_Muito pouco.
_Toca alguma coisa pra mim.
O homem esqueceu que estava de saída, sentou em cima da mesa
e dedilhou uma coisa que eu nunca tinha ouvido antes, pra mim foi um choque,
como um homem rústico, de mãos calejadas, pudesse produzir uma coisa tão linda
daquelas e letra triste, quase um choro, de tão triste.
Fascinada, a Sonia, sempre que podia me apanhava e descia pra
garagem, pra mais um show do Juventino.