domingo, 28 de agosto de 2016

Quebra da ordem estabelecida.


Se acordava e entrava na fila da pia, seguia-se a fila para descer as escadas e tomar o café, entrava-se na fila para a classe, uma fila para o recreio...se seguia uma rotina de filas, até a hora de dormir.
Para tudo, se seguia em fila, uma ordem estabelecida sempre, muitos dos interno que foram para o Educa, ao se verem em campo aberto e livres das filas, se perderam.
Uns se retraíram, uns se expandiram, uns soltaram a franga e outros enlouqueceram mesmo.
Quando haviam os passeios, a rotina era quebrada e, ainda que em alguns deles se seguissem as filas, dava para se divertir.
Em 1974, quando se inaugurou a primeira linha de Metrô do Brasil, em quase todos os fins de semana, íamos para o centro e passeávamos nos trens de graça.
Os passeios da Casa da Infância, em geral, eram muito divertidos...haviam os programas de televisão ou as idas à Bertioga, quase não dava para as freiras ou as moças segurarem o ímpeto dos meninos, todas terminavam em sermão, por conta de algum guri que acabou se empolgado demais.
Haviam os passeios mais curtos, pelo bairro mesmo...tipo ir ao museu dos bichos, desse eu não gostava muito, bichos empalhados nunca me agradou, quando passeávamos no Instituto padre Chico, era uma festividade e o pessoal de lá, apesar da deficiência, tinham um astral muito bom.
Em algumas sextas-feiras, saíamos com a tia Herotildes e, cada qual com uma nota de 1 cruzeiro, tentava economizá-la ao máximo, isso fazia parte do aprendizado da terceira série.
Agora, o campeão de todos os passeios era mesmo o do Museu do Ipiranga, essas visitas me fizeram fanático por história.
Num desses passeios, vi quebradas todas as regras do rigoroso sistema das freiras.
Era sempre agradável percorrer a distância a pé, conosco estavam as madres Márcia e Brasil, além da moça Sonia.
Depois de constatar que o museu estava sofrendo reformas e não seria aberto ao público naquele dia, tiveram ideia de visitar a tia Cecília, professora da primeira série (minha madrinha), que morava na rua Bom Pastor.
A tia Cecília, que era filha de japoneses, nos recebeu de braços abertos e enquanto ela nos preparava pasteizinhos, ficamos assistindo "japan Pop Show" com o simpático Carvalho, marido dela.
No melhor da festa, as nuvens começaram a se carregar e, nos despedimos da professora, que morava na parte de cima da papelaria Carvalho e, como precisávamos andar acelerados, não carecia de fila.
Na verdade, entre as nuvens negras e o temporal, foram alguns poucos minutos e a gente havia percorrido alguns quarteirões, uns quatro.
Nos abrigamos no toldo de uma fábrica, era chuva de vento e assim mesmo estávamos nos molhando, uns 10 guris, as freiras e a moça.
De frente para a rua, pudemos ver que enquanto a chuva prosseguia, a água voltava e inundava a rua, uns quatro degraus acima do nível da rua, estávamos protegidos.
O tempo passava e nada de diminuir a chuva que caía em cântaros, o vento gelava e trazia mais água.
Na rua, um grupo de meninos que vinham das ruas de cima, só de calções, passaram a pular na piscina que a chuva havia formado, alguns vinham correndo no asfalto e se jogavam, espalhando as águas, chuva aumentava e o grupo crescia, garotos de variadas idades gritavam, um guri de uns quinze anos notou a nossa presença e, mesmo vendo os adultos, passou a nos chamar para a farra, fizemos sinal que não podíamos e ele insistiu em chamar.
A Sonia deu de ombros, a madre Márcia, que tinha olhos dum azul profundos, ficou tentada a autorizar, mesmo assim deixou a decisão para a madre Brasil.
Ah, deixar para a madre Brasil foi como dizer amém, ela disse:
_Tirem as camisas e os Congas e tomem cuidado.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

O silêncio velado.


Quando se acordava, bem cedo, ia-se ao lavatório e, ainda de pijamas, se escovava os dentes e se podia usar o banheiro, depois trocava-se a roupa e arrumava-se a cama.
Todo dia se seguia um ritual com horários marcados e seguidos à risca, uma rotina quase militar e, com efeito, militares mandavam na nação.
Nas paredes azulejadas do lavatório, as freiras costumavam colar figuras de pessoas ilustres e de grande relevância para a humanidade, por exemplo: ...os presidentes do Brasil e dos Estados Unidos, isso servia para atualizar os meninos, com relação ao mundo e, acabava mostrando que o mandatário do Brasil sempre exibia uma cara amarrada, enquanto o gringo sempre sorria.
Em 1974 a televisão mostrou, muito rapidamente, algo que acontecia em Portugal, algo relacionado com briga armada e cravos, uma reportagem só e não mais se falou no assunto, aquilo me deixou muito curioso e fui querer saber mais a respeito.
A madre Brasil, logo que a pergunta lhe bateu nos ouvidos, virou o rosto, assobiou uma cançãozinha e saiu, a Margarida que, estava no balcão da portaria, me mandou sair e por pouco não fez o sinal da cruz, a dona Augusta baixou o som do Vicente Celestino, velou grave a voz e, olhando em volta, sussurrou:
_Menino, deixa essas coisa do guverno em banho Maria, não cutuque a onça.
Entendi então que era um assunto proibido, nesses casos só havia uma solução, procurar uma patente superior.
O padre Zezinho almoçava todos os dias na salinha dos professores, bem ao lado da cozinha.
A Vovozinha fez-lhe o prato e me entregou, levei-o à mesa do padre e fiquei ao lado.
Assim que ele enfiou a primeira garfada na boca, tasquei a pergunta:
_Padre, o que é essa revolução dos cravos?
Engasgou, tossiu e pediu o copo com água, quando a vermelhidão passou, fez um relatório da história de Portugal com requintes de detalhes, desde a pré-história.
Boa alma, o padre Zezinho.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

O troco


As vezes, as pessoas com quem convivi na infância, discordam do jeito com que eu descrevo as coisas e os fatos...pra eles, havia muito sofrimento naquilo tudo, e eu entendo isso.
Suponho que, se eu tivesse uma família ou uma casa e, fosse impedido de estar lá, o colégio seria um martírio sem fim, mas não é o caso, no meu caso o colégio era a minha casa, os meninos e os adultos eram a minha família, posto isso, eu tive uma infância maravilhosa.
Eventualmente, haviam coisas tristes feito existem em vários lares, as coisas boas foram infinitamente maiores que nem vale a pena lembrar de que era ruim, quando lembro do guri que eu fui, sei que era feliz e sabia disso.
Quando tinha 17 anos, fui voluntário na F.E.B.E.M da Celso Garcia, tinha vontade de ser professor e resolvi fazer esse estágio, me passei por adulto e pensei que tinha conhecimento de causa.Fui ensinar futsal.
  É claro que havia acabado de sair da infância, por esses tempos vivemos uma época de encantamentos românticos...o passo era muito maior que a minha perna.
Me enganei completamente, aqueles não eram menores carentes, eram infratores, desses pivetes que você mantêm distancia, só de encontrar na rua.
Alguns deles eram mais altos e mais fortes que eu, uns tinham barba, coisa que eu só fui ter com 30, eram avessos ao comando e bastava um gesto mais brusco e, se tinha uma rebelião, eu ia tentando e tentando...feito falar pra uma porta.Sem a vivência que só fui adquirir mais tarde, procurava um jeito de me fazer notar, uma deixa qualquer, pra que eu pudesse entrar no mundo deles.
  Se me fosse permitido a entrada...eu poderia tocar seus corações.
  O tempo passava e, eu não conseguia me impor, não andava, se andava era pra trás e já mostrava sinais de cansaço.
Um grupo de meninos rebeldes que jogavam bola com uma habilidade de dar inveja aos profissionais da bola, com comportamento de meter inveja aos profissionais do crime, passei a rezar pro contrato acabar, convenci a mim mesmo que aquele não era o meu ramo.
  Por esse tempo, me veio à cabeça uma velha canção de Belchior, quanto mais eu me perdia, mais ela vinha forte..."Amar e mudar as coisas, amar e mudar as coisas".
  Como eu poderia amar e mudar aquilo tudo??mentalmente eu respondia ao cearense ilustre:
  "A vida realmente é diferente, quer dizer, ao vivo é muito pior".
 Estar ali, me irritava, às vésperas de chegar ali, meu corpo se recusava e, a alma me arrastava...minha alma é de uma teimosia de besta selvagem.
  Dentre esses meninos havia um líder, o mais violento de todos, olhava pra todos com olhar desafiador, media quase 2 metros de altura.
A conduta anti-desportiva fez com que ele fosse impedido de praticar esporte, mesmo com a proibição,, foi à quadra pra ver se revertia a situação.
Eu já havia iniciado a aula e os meninos estavam sentados no chão, diante de mim e, ele chegou-se afoito.
  Não se desculpou, foi logo perguntando:
_O que eu posso fazer, cresci sem família, sem amor...a vida me fez assim, o que é que eu posso fazer???
Os outros guris permaneceram sentados, todos olhavam pra mim, como se a pergunta fosse deles também, com calma fiz sinal para que ele se sentasse também.
  Do nada, o milagre havia caído no meu colo, eu os tinha em meu controle, respirei fundo e virei adulto:
  _Você dá o troco na vida, não é preciso receber pra dar.
A interrogativa permaneceu ainda nos rostos deles, passei a contar da minha infância, sem maquiagem, tudo, só a verdade.
  Do corredor da delegacia, até a saída do Educandário Dom Duarte, foi um longo caminho...pagando a generosidade das pessoas que me deram carinho, até não haver mais dividas.
  A aula, que deveria durar 40 minutos, ultrapassou as 3 horas e sequer encostamos nos materiais esportivos, percebi que eu tinha que contar a minha história, qualquer coisa didática e teórica jamais teria o mesmo efeito que a minha própria vivencia, havia chamado a atenção daqueles meninos.
Ao final da aula, pela primeira vez na vida, alguém me chamou de professor.
  Essa foi a minha primeira turma e, tenho saudades dos títulos que conquistamos juntos.
  Muitos anos mais tarde, estava eu com meus filhos e mais uns vinte meninos do meu time, fazendo churrasco no Parque do Piqueri, alguém grita o meu nome e, eu nem fazia ideia de quem pudesse ser, volto-me, tentando reconhecer.
Um homenzarrão vem em minha direção e me abraça, me apresenta 3 filhos lindos, conta como virou a sorte da vida e apontando pro filho mais velho, diz:
_O nome dele é Nilton...dei o troco na vida.