terça-feira, 27 de setembro de 2016

Porque Cosme é meu amigo...


Na igreja católica, nessa data, comemora-se a festa dos santos que eram crianças e, em religiões de matriz africanas, faz-se o mesmo.
Lógico que tenho noção de que grande parte das pessoas que moraram na Casa da Infância, não são mais católicas.
Cabe a cada qual, seguir o que é do seu agrado e, longe de mim julgar a vontade alheia, a vida não me deu pedras, deu-me a tolerância.
A tolerância quem me deu mesmo, foram as freiras da Casa da Infância do Menino Jesus.
Puxando a memória, posso ver, misturados, véus brancos e turbantes, hábitos e batas, crucifixos e colares de contas...tudo isso na mesma cena.
Em dia de Cosme e Damião, as freiras se aprontavam com roupas de gala, os meninos vestiam a roupa da Liga e subiam na Kombi do seu Paulo e, na minha memória sempre vem o maior exemplo de tolerância religiosa da minha infância.
Num terreiro, que eu não me lembro o endereço, doces eram servidos aos meninos por filhas de santo gentis, enquanto o atabaque marcava o tom da festa.
Claro que os salgados e doces marcaram, porém, a coisa mais linda era o vento que trazia a primavera, que batia nos vestidos das mulheres presentes e, os panos brancos esvoaçavam iguais, mostrando que Deus é o mesmo, independente da religião que professem os seres de cores diferentes.

domingo, 28 de agosto de 2016

Quebra da ordem estabelecida.


Se acordava e entrava na fila da pia, seguia-se a fila para descer as escadas e tomar o café, entrava-se na fila para a classe, uma fila para o recreio...se seguia uma rotina de filas, até a hora de dormir.
Para tudo, se seguia em fila, uma ordem estabelecida sempre, muitos dos interno que foram para o Educa, ao se verem em campo aberto e livres das filas, se perderam.
Uns se retraíram, uns se expandiram, uns soltaram a franga e outros enlouqueceram mesmo.
Quando haviam os passeios, a rotina era quebrada e, ainda que em alguns deles se seguissem as filas, dava para se divertir.
Em 1974, quando se inaugurou a primeira linha de Metrô do Brasil, em quase todos os fins de semana, íamos para o centro e passeávamos nos trens de graça.
Os passeios da Casa da Infância, em geral, eram muito divertidos...haviam os programas de televisão ou as idas à Bertioga, quase não dava para as freiras ou as moças segurarem o ímpeto dos meninos, todas terminavam em sermão, por conta de algum guri que acabou se empolgado demais.
Haviam os passeios mais curtos, pelo bairro mesmo...tipo ir ao museu dos bichos, desse eu não gostava muito, bichos empalhados nunca me agradou, quando passeávamos no Instituto padre Chico, era uma festividade e o pessoal de lá, apesar da deficiência, tinham um astral muito bom.
Em algumas sextas-feiras, saíamos com a tia Herotildes e, cada qual com uma nota de 1 cruzeiro, tentava economizá-la ao máximo, isso fazia parte do aprendizado da terceira série.
Agora, o campeão de todos os passeios era mesmo o do Museu do Ipiranga, essas visitas me fizeram fanático por história.
Num desses passeios, vi quebradas todas as regras do rigoroso sistema das freiras.
Era sempre agradável percorrer a distância a pé, conosco estavam as madres Márcia e Brasil, além da moça Sonia.
Depois de constatar que o museu estava sofrendo reformas e não seria aberto ao público naquele dia, tiveram ideia de visitar a tia Cecília, professora da primeira série (minha madrinha), que morava na rua Bom Pastor.
A tia Cecília, que era filha de japoneses, nos recebeu de braços abertos e enquanto ela nos preparava pasteizinhos, ficamos assistindo "japan Pop Show" com o simpático Carvalho, marido dela.
No melhor da festa, as nuvens começaram a se carregar e, nos despedimos da professora, que morava na parte de cima da papelaria Carvalho e, como precisávamos andar acelerados, não carecia de fila.
Na verdade, entre as nuvens negras e o temporal, foram alguns poucos minutos e a gente havia percorrido alguns quarteirões, uns quatro.
Nos abrigamos no toldo de uma fábrica, era chuva de vento e assim mesmo estávamos nos molhando, uns 10 guris, as freiras e a moça.
De frente para a rua, pudemos ver que enquanto a chuva prosseguia, a água voltava e inundava a rua, uns quatro degraus acima do nível da rua, estávamos protegidos.
O tempo passava e nada de diminuir a chuva que caía em cântaros, o vento gelava e trazia mais água.
Na rua, um grupo de meninos que vinham das ruas de cima, só de calções, passaram a pular na piscina que a chuva havia formado, alguns vinham correndo no asfalto e se jogavam, espalhando as águas, chuva aumentava e o grupo crescia, garotos de variadas idades gritavam, um guri de uns quinze anos notou a nossa presença e, mesmo vendo os adultos, passou a nos chamar para a farra, fizemos sinal que não podíamos e ele insistiu em chamar.
A Sonia deu de ombros, a madre Márcia, que tinha olhos dum azul profundos, ficou tentada a autorizar, mesmo assim deixou a decisão para a madre Brasil.
Ah, deixar para a madre Brasil foi como dizer amém, ela disse:
_Tirem as camisas e os Congas e tomem cuidado.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

O silêncio velado.


Quando se acordava, bem cedo, ia-se ao lavatório e, ainda de pijamas, se escovava os dentes e se podia usar o banheiro, depois trocava-se a roupa e arrumava-se a cama.
Todo dia se seguia um ritual com horários marcados e seguidos à risca, uma rotina quase militar e, com efeito, militares mandavam na nação.
Nas paredes azulejadas do lavatório, as freiras costumavam colar figuras de pessoas ilustres e de grande relevância para a humanidade, por exemplo: ...os presidentes do Brasil e dos Estados Unidos, isso servia para atualizar os meninos, com relação ao mundo e, acabava mostrando que o mandatário do Brasil sempre exibia uma cara amarrada, enquanto o gringo sempre sorria.
Em 1974 a televisão mostrou, muito rapidamente, algo que acontecia em Portugal, algo relacionado com briga armada e cravos, uma reportagem só e não mais se falou no assunto, aquilo me deixou muito curioso e fui querer saber mais a respeito.
A madre Brasil, logo que a pergunta lhe bateu nos ouvidos, virou o rosto, assobiou uma cançãozinha e saiu, a Margarida que, estava no balcão da portaria, me mandou sair e por pouco não fez o sinal da cruz, a dona Augusta baixou o som do Vicente Celestino, velou grave a voz e, olhando em volta, sussurrou:
_Menino, deixa essas coisa do guverno em banho Maria, não cutuque a onça.
Entendi então que era um assunto proibido, nesses casos só havia uma solução, procurar uma patente superior.
O padre Zezinho almoçava todos os dias na salinha dos professores, bem ao lado da cozinha.
A Vovozinha fez-lhe o prato e me entregou, levei-o à mesa do padre e fiquei ao lado.
Assim que ele enfiou a primeira garfada na boca, tasquei a pergunta:
_Padre, o que é essa revolução dos cravos?
Engasgou, tossiu e pediu o copo com água, quando a vermelhidão passou, fez um relatório da história de Portugal com requintes de detalhes, desde a pré-história.
Boa alma, o padre Zezinho.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

O troco


As vezes, as pessoas com quem convivi na infância, discordam do jeito com que eu descrevo as coisas e os fatos...pra eles, havia muito sofrimento naquilo tudo, e eu entendo isso.
Suponho que, se eu tivesse uma família ou uma casa e, fosse impedido de estar lá, o colégio seria um martírio sem fim, mas não é o caso, no meu caso o colégio era a minha casa, os meninos e os adultos eram a minha família, posto isso, eu tive uma infância maravilhosa.
Eventualmente, haviam coisas tristes feito existem em vários lares, as coisas boas foram infinitamente maiores que nem vale a pena lembrar de que era ruim, quando lembro do guri que eu fui, sei que era feliz e sabia disso.
Quando tinha 17 anos, fui voluntário na F.E.B.E.M da Celso Garcia, tinha vontade de ser professor e resolvi fazer esse estágio, me passei por adulto e pensei que tinha conhecimento de causa.Fui ensinar futsal.
  É claro que havia acabado de sair da infância, por esses tempos vivemos uma época de encantamentos românticos...o passo era muito maior que a minha perna.
Me enganei completamente, aqueles não eram menores carentes, eram infratores, desses pivetes que você mantêm distancia, só de encontrar na rua.
Alguns deles eram mais altos e mais fortes que eu, uns tinham barba, coisa que eu só fui ter com 30, eram avessos ao comando e bastava um gesto mais brusco e, se tinha uma rebelião, eu ia tentando e tentando...feito falar pra uma porta.Sem a vivência que só fui adquirir mais tarde, procurava um jeito de me fazer notar, uma deixa qualquer, pra que eu pudesse entrar no mundo deles.
  Se me fosse permitido a entrada...eu poderia tocar seus corações.
  O tempo passava e, eu não conseguia me impor, não andava, se andava era pra trás e já mostrava sinais de cansaço.
Um grupo de meninos rebeldes que jogavam bola com uma habilidade de dar inveja aos profissionais da bola, com comportamento de meter inveja aos profissionais do crime, passei a rezar pro contrato acabar, convenci a mim mesmo que aquele não era o meu ramo.
  Por esse tempo, me veio à cabeça uma velha canção de Belchior, quanto mais eu me perdia, mais ela vinha forte..."Amar e mudar as coisas, amar e mudar as coisas".
  Como eu poderia amar e mudar aquilo tudo??mentalmente eu respondia ao cearense ilustre:
  "A vida realmente é diferente, quer dizer, ao vivo é muito pior".
 Estar ali, me irritava, às vésperas de chegar ali, meu corpo se recusava e, a alma me arrastava...minha alma é de uma teimosia de besta selvagem.
  Dentre esses meninos havia um líder, o mais violento de todos, olhava pra todos com olhar desafiador, media quase 2 metros de altura.
A conduta anti-desportiva fez com que ele fosse impedido de praticar esporte, mesmo com a proibição,, foi à quadra pra ver se revertia a situação.
Eu já havia iniciado a aula e os meninos estavam sentados no chão, diante de mim e, ele chegou-se afoito.
  Não se desculpou, foi logo perguntando:
_O que eu posso fazer, cresci sem família, sem amor...a vida me fez assim, o que é que eu posso fazer???
Os outros guris permaneceram sentados, todos olhavam pra mim, como se a pergunta fosse deles também, com calma fiz sinal para que ele se sentasse também.
  Do nada, o milagre havia caído no meu colo, eu os tinha em meu controle, respirei fundo e virei adulto:
  _Você dá o troco na vida, não é preciso receber pra dar.
A interrogativa permaneceu ainda nos rostos deles, passei a contar da minha infância, sem maquiagem, tudo, só a verdade.
  Do corredor da delegacia, até a saída do Educandário Dom Duarte, foi um longo caminho...pagando a generosidade das pessoas que me deram carinho, até não haver mais dividas.
  A aula, que deveria durar 40 minutos, ultrapassou as 3 horas e sequer encostamos nos materiais esportivos, percebi que eu tinha que contar a minha história, qualquer coisa didática e teórica jamais teria o mesmo efeito que a minha própria vivencia, havia chamado a atenção daqueles meninos.
Ao final da aula, pela primeira vez na vida, alguém me chamou de professor.
  Essa foi a minha primeira turma e, tenho saudades dos títulos que conquistamos juntos.
  Muitos anos mais tarde, estava eu com meus filhos e mais uns vinte meninos do meu time, fazendo churrasco no Parque do Piqueri, alguém grita o meu nome e, eu nem fazia ideia de quem pudesse ser, volto-me, tentando reconhecer.
Um homenzarrão vem em minha direção e me abraça, me apresenta 3 filhos lindos, conta como virou a sorte da vida e apontando pro filho mais velho, diz:
_O nome dele é Nilton...dei o troco na vida.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Meu melhor amigo (Final)


Já que essa é uma quarta parte de uma história, não vou me ater em prefácios ou considerações desnecessárias, posto que, em um capitulo eu poderia ter escrito tudo.
Não, não poderia e, você vai entender o motivo da minha demora.
Feito isso, convido o leitor a uma história das que eu não gosto de escrever, uma história sem final feliz.
Não era muito comum de acontecer, mas em algumas tardes fazíamos atividades numa salinha que ficava no fundo da quadra e era o subsolo do teatro, as atividades eram mais recreativas que, propriamente lúdicas.
Como isso se dava em horário de recreio, ao invés de subirmos pro pátio, brincávamos na quadra.
Brincar na quadra sem bola exigia muita criatividade, alguém sugeriu esconde-esconde e determinou que, se alguém subisse pra rampa não valeria.
Amigos que éramos, assim que o Helio virou-se pra bater cara na parede da sala de jogos, corremos juntos, da portaria para o refeitório, a rampa faz um perfeito angulo de 90 graus, nessa inclinação ficou um vão, nesse vão foi construída uma pequena sala, onde eram guardadas as ferramentas de jardinagem, revestida de madeira e a porta ficava de frente com o portão vidrado que dava acesso à lavanderia. Esse depósito estava na altura da quadra e um pequeno muro separava o jardim.
Corremos juntos e a intenção era nos esconder no jardim, era nosso costume apoiar as mãos no muro (que tinha a altura de nossas cinturas) e jogar os corpos pra frente, como se pulássemos no dorso de um cavalo. O fizemos juntos e ao mesmo tempo, o que não podíamos imaginar é que, no lado de dentro do jardim, alguém havia jogado uns cacos de garrafas quebradas.
Ora, a primeira coisa que guri faz, pra iniciar uma corrida é se livrar do calçado, quando alcançamos o chão do outro lado, aterrissamos em cima dos cacos, a dor não foi imediata, o choro era causado pela angustia de tanto sangue, fechamos os olhos e gritamos por socorro.
A madre Enfermeira nos atendeu, lavou-nos os pés e o seu Paulo já nos esperava pra levar ao hospital.
Meus cortes foram profundos e sempre tive a cicatrização rápida, enquanto eu era atendido num leito simples, o Fernandinho foi levado pra outra sala, um time de médicos e enfermeiras o acompanhava, em coisa de duas horas, o médico disse que eu estava liberado, os dois pés enfaixados, o seu Paulo trouxe uma cadeira de rodas, perguntei do amigo e ele disse que ainda havia umas radiografias a ser tirada, a madre Enfermeira ficaria com ele, notei que o seu Paulo disfarçava uma preocupação.
Em uma semana, já haviam me retirado as faixas e eu tentava andar, apenas uma pequena dor e nada do Fernandinho, a madre Enfermeira me evitava e as outras freiras não conseguiam evitar um ar de crescente pesar, eu perguntava sobre e todas elas desconversavam.
Mais uns dias se passaram, eu já jogava bola e a turma do São Pedro foi convocada pra uma reunião, a Madre Brasil explicou que o Fernandinho ia ficar um bom tempo na enfermaria, tudo o que era dele havia sido levado pra lá, ao fim da reunião a madre disse pra eu ficar, queria falar comigo a sós. Me disse que a única pessoa que poderia visita-lo era eu, não queria ver mais ninguém.
Levou-me à enfermaria, falou que eu deveria ser forte, imaginei o pior e quando me viu sorriu, não me pareceu tão mal assim.
Seus pés ainda não haviam cicatrizado e era uma carne purulenta, feio de se ver.
Desde muito pequeno, tenho a capacidade de disfarçar algumas emoções, dificilmente me assustam as coisas, na verdade assustam só que eu não demonstro que me assustei, criei isso sozinho, pra me defender, se não me vissem sentimento como o medo e o horror, jamais poderiam me atingir.
Então, se aquela ferida me dava náusea, o amigo não perceberia e jamais sentiria o constrangimento de causar o horror em olhares alheios.
Fiquei na enfermaria com o amigo e só saí na hora da janta.
No dia seguinte a madre Márcia perguntou se eu não me importaria de dormir no leito vizinho do amigo_sem problemas e fiquei.
Todas as revistinhas da sala de jogos foram levadas pra nós, eu tomava café, almoçava e jantava na enfermaria, só saía em horário de aula, assim que terminava a aula, a tia Sonia subia comigo e passava as mesmas lições que passara em sala, quando não dava para fazê-lo me encarregava de passar a matéria pro amigo.
Conversávamos muito e brincávamos e riamos muito, porém, eu sentia no olhar dos adultos, que a coisa não ia bem.
Uma tarde quando eu vinha da aula, não estava na cama o amigo, disseram que ia sofrer uma cirurgia e voltaria em uns três dias, os olhos da madre Brasil estavam vermelhos e ela evitava me olhar de frente, que remédio... voltei pro pátio.
Em três dias voltou me avisaram e quando subia as escadas, nos últimos degraus parei, sem que elas me vissem, fiquei a olhar a cena, a madre Brasil chorava copiosamente e a Enfermeira a acalmava, estavam ali, fora do hall da enfermaria, para que o paciente não percebesse a cena, dei uns passos pra trás e voltei pro começo do último lance da escada e iniciei a subida batendo os pés com força, perceberam a minha presença e ficaram em posição de sentido, dei bom dia pras irmãs.
As duas respiraram fundo e corresponderam à saudação, já sem as lagrimas, a madre Brasil, como já era de costume, ajoelhou-se e fico da minha altura, me deu um beijo e disse:
_Seja forte, muito forte.
Não deu pra entender, mas, fiz que houvesse entendido, levantou-se e pegou na minha mão, me levou ao quarto do Fernandinho.
O amigo estava deitado, seus olhos tristes buscavam um ponto inexistente no raio de sol, que vinha da janela de vidro, a madre Enfermeira ficou na porta, a outra foi comigo até o pé da cama.
Só agora, olhando de perto, vi o que fazia a infelicidade do amigo, o joelho da perna esquerda estava enfaixado e terminava ali, haviam amputado o resto da perna.
Não me olhou o amigo, um profundo silêncio reinou no quarto, uma borboleta bateu no vidro, ainda que ela pudesse ver o ambiente do outro lado, não podia transpor a barreira, inconformada, jogou-se contra o vidro na vã tentativa de entrar.
Nove anos eu tinha, nessa pouca idade já presenciara coisas que fariam essa cena ser banal, abri a janela, com a borboleta uma brisa refrescante invadiu o quarto, mostrei o meu melhor sorriso:
_Caramba, imagina se te derem uma perna biônica, daquela do "Homem de seis milhões de dólares", não seria legal?
E saiu assim, na maior de todas as naturalidades do mundo, o amigo não olhava mais pro tal ponto, fechou os olhos e começou imaginar o que eu havia proposto, segundo depois soltou uma sonora gargalhada e me abraçou, ria também a madre Brasil, madre Enfermeira entrou e, entre as risadas fazia SSSSSHHHHHHH.
A mãe dele vinha nos fins de semanas, como era costume de anos, trazia os nossos doces, na cama brincávamos de forte apache e a Rúbia emprestou-nos uma vitrola com vários discos, o tio do Alberto veio num dia de visitas e mandou instalar uma televisão em cores, doou pra enfermaria, de vez em quando ele pedia pra passear pelo colégio, na cadeira de rodas e eu empurrando, por todos os caminhos que costumávamos nos aventurar.
Um dia, eu estava em aula, chegou à madre Da Glória e disse que o amigo havia partido, só então, me disseram que era câncer.
Houve velório e cerimônia de enterro, me recusei a comparecer nos dois.

Entre a entrada no hospital e o final de tudo, foram cinco meses e, a falta é eterna.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

A primeira vez que eu vi o mar


Nasci na capital de São Paulo e a minha primeira infância foi passada num colégio de freiras no Ipiranga.
Não conhecia a leitura, mas conhecia o mar dos versos de Vicente de Carvalho, que a irmã Dolores recitava e das canções de Dorival Caymmi.
No mês de Janeiro, ficávamos acampados em Bertioga, numa escola municipal, no primeiro dia, mal o sol nascia, as freiras nos levaram para a praia, era, na época, uma praia vazia e antes de vermos o mar, já ouvíamos o seu barulho, com cinco anos eu tive medo.
Quando pisei na areia, vi aquela imensidão, lá longe o sol principiava a subida e parecia pequeno, diante da imensidão daquele azul.
Os outros meninos já estavam dentro d'água e eu olhava tudo com medo, seria redundância dizer que eu me sentia pequeno, já que, eu era realmente pequeno, uma onda veio me buscar, deixei que ela cobrisse os meus pés, estava gelada, me afastei.
No horizonte, o sol já subia metade do corpo, a minha pouca idade tentava entender, aquilo tudo era muito maior que os versos do poeta ou a música, a irmã Dolores chegou perto e pegou minha mão:
_Mar, esse é o Nilton... Nilton, esse é o mar.
Foi andando comigo pra dentro da água, quando a água já chegava na altura do seu joelho, parou e ficou esperando que eu soltasse a sua mão, soltei e fui ter com os outros guris.
Lá pro meio dia, não tinha ninguém que me tirasse da água.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

A Rúbia.


Antes do meu tempo, elas eram chamadas de "Voluntárias”, soube disso faz pouco tempo, o Udiney me contou, o fato é que meus contemporâneos as chamavam simplesmente de moças.
É claro que era meio estranho chamar a Margarida de moça, porém, era uma regra e, regras são nada mais que regras, portanto, eram moças.
E, justiça seja feita, eram elas que, de fato, cuidavam das crianças, eu tenho lembranças da Olga escovando os meus dentes e da Cinira me banhando, quando eu nem conseguia fazer isso.
De todas elas, a minha predileção pendia pro lado da Rúbia, que era no meu ver a mais alegre de todas, efusiva, talvez seja o adjetivo que melhor a descrevesse, se todas as moças eram personagens de foto novelas, a Rúbia era comunista, tinha opinião e contestava.
Usava, na maioria das vezes uns jeans desbotados ou aquelas roupas soltas dos Hippies, sempre com sandálias franciscanas.
Cortava os cabelos bem curtinhos, bem à moda da Elis Regina e, feito a Pimentinha, tinha opiniões seguras, coisa rara de se ver nos adultos dos anos 70.
O outro fato, que me fazia ser apaixonado pela Rúbia é que, muitas vezes, quando ela folgava, me levava pra casa dela e, nessas saídas, tive o prazer de participar de algumas reuniões clandestinas do Partidão.
Sempre se mantinha na crista da onda, ouvia Belchior, Caetano e os Mutantes, me fazia ouvir as músicas e pedia que eu desse significado pra todas as letras, acabou que fiquei craque nisso.
Uma bela tarde, no horário de repouso, me arrastou para o hall das moças, não era costume dos internos, frequentar essas dependências.
No corredor, assim que deram conta da minha presença, as outras moças, em roupas de baixo, correram pros seus quartos, pra não ficar mal, fechei os olhos com as mãos e jurei que não ter visto nada, muito embora, até hoje eu me pergunte_porquê, diabos, a Cinira usava calcinhas de criança, daquelas enfeitadas com estampas do Mickey.
Entramos no quarto da Rúbia e como quem faz uma coisa proibida, fechou a porta e com o dedo indicador nos lábios, me exigiu silêncio, fiquei imóvel.
Pediu que eu me sentasse na cama e se ajoelhou perto de mim, depois estendeu a mão para debaixo da cama e de lá retirou uma vitrola, jogou a vitrola na cama e abriu o compartimento das pilhas, estavam todas lá, levantou o travesseiro e, com todo o cuidado do mundo tirou de lá um LP, mostrou pra mim, Taiguara... e uns dizeres meio indígenas.
Havia um disco censurado do cantor e, era aquele mesmo, passamos umas duas horas ouvindo o disco.