quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Exílio

A Casa da Infância é eterno exercício de memória, passei minha primeira infância lá, meu pé na literatura e meu gosto musical floresceu naqueles dois prédios da avenida Nazareth, não existe jeito de esquecer os momentos que fizeram de mim o que sou.

Não tem como esquecer das freiras mas, meus agradecimentos vão às outras pessoas, as moças.
Essas eram quem, de fato, cuidavam dos guris, o cara mais fraco da memória, se forçar bem, vai lembrar delas nos dando banho, quando a gente nem sabia se lavar.
Umas eram o mau humor em pessoa, outras tinham a calma de um anjo, feito a Rúbia.
Torço para que o leitor tenha encontrado na infância uma pessoa do naipe da Rúbia.
Era o ano de 1973, na salinha escura que ficava embaixo do palco e se entrava pela porta que ficava na frente da seringueira da quadra e ela levou a vitrolinha com seus discos de vinil.
Antes de executar a faixa, ela nos lembrou que o país vivia uma ditadura, Taiguara era exilado e censurado no Brasil.
Contou que, olhando as ruas de Londres coberta pela névoa ele sentia saudades de Porto Alegre em todas as manhãs, com o olhar de pena perdido num ponto invisível, fez a pergunta retórica:
_Vocês fazem ideia de como deve ser triste, olhar um cenário e se lembrar de outro???
Ah, de vez em quando, ele tinha a sorte de assistir Lennon a cantar bem cedinho.
O disco rodou na vitrolinha vermelha e a turma do Sagrado Coração se maravilhou.

quinta-feira, 15 de março de 2018

O Agostinho dos Santos.

Cheguei à Casa da Infância do Menino Jesus com dois anos de idade, uma série de eventos, circunstancias e atitudes erradas me levaram e ao meu irmão, à condição de órfãos.
Essas coisas não são culpa de ninguém, não me doeu, me adaptei à nova situação e conheci um mundo novo.
Conforme o tempo passava, a memória anterior a isso foi se embaralhando e foi ganhando status de sonho ou coisa que se almeja.
O gosto pela música, eu já trazia comigo e a vivencia num orfanato que respirava isso, fez com que esse gosto aumentasse, ao ponto de as minhas memórias serem pautadas pela música, num sentido mais profundo, se tu me disser de determinada música, te digo o ano exato dela e o que acontecia na história.
Então, eu sabia o gosto musical de todos os funcionários e traçava o perfil psicológico de todos, pelo gosto musical.
Em 1971, quando eu estava no pátio do Anjo da Guarda, a televisão anunciou a morte de um artista consagrado, num acidente aéreo em terras francesas, morreu Agostinho dos Santos e, estranhamente, isso me abalou.
Era raro ouvir a voz desse cantor, ninguém do colégio era fã dele e sua música não era tocada pela mídia da época.
Estranhamente, as poucas vezes que eu ouvia-lhe a voz, eu fechava os olhos e me via voando alto com os braços abertos, sem que nada me segurasse.
A voz de veludo desse cantor me era muito familiar e, muitas vezes me levava às lágrimas, mesmo quando o repertório era mais feliz, no meu gosto musical coloquei o cantor numa nuvem que não havia mais ninguém junto...mistério.
Bom, qualquer encanto, por mais pesado que seja, um dia se acaba e, o rio vai sempre vai voltar para o seu curso.
Coisa de dez anos, mais ou menos, reencontrei a minha família, pelo menos o que sobrou dela e aquela parte da memória que havia ido para o limbo, se dissipou.
Acabou que eu descobri a familiaridade do cantor para a minha vida.
Esse, Agostinho dos Santos, era amigo de infância do meu pai e meu tio, sua mãe e minha avó eram vizinhas de porta, lá no Bexiga e aquela sensação de voar era muito simples:
Quando o trio de amigos brincavam, tinham por hábito, me colocar sentado no ombro e correr atrás dos outros.


sábado, 20 de janeiro de 2018

Os funcionários.

Essa postagem poderia ser intitulada de "As funcionárias", já que, só haviam dois homens no prédios, um era o seu Paulo, que dirigia a Kombi e, só em ocasiões específicas era visto.
O outro era o baiano Juventino, mas esse merece um capítulo especial, portanto, vamos às moças.
Começando pelas queridas vovó e vovózinha, que trabalhavam na cozinha, me lembro que a mais nova, que era a mais alta, nem tinha idade para ser avó e se chamava Helena.
A outra, a mais baixa, era de fato avó e se chamava Maria.Essa tinha a estatura de uma criança de 10 anos e era muito fofa.
As duas eram escuras e os dorsos que elas usavam na cabeça, as deixavam parecidas com a tia Anastácia, do "Sitio do Pica-Pau amarelo.
Opa, o leitor deve estar estranhando o fato de eu saber dessas coisas, já disse que fiquei muito de castigo, um dos castigos era lavar a louça da janta.
Descendo a escada do hall da cozinha, se chegava à caldeira, onde era proibida a entrada de crianças, mas, ao lado havia a lavanderia, onde a Rose, uma pernambucana de Jaboatão, que tinha olhos verdes e sardas no rosto trabalhava.Lembro que ela era muito jovem e a sua voz era de criança e nas horas de folga, lia romances.
A Benedita, num outro comodo, passava roupas, essa era do interior de São Paulo, tinha mais de 40 e se vestia com roupas de jovens, levava as unhas e os lábios sempre pintados num vermelho forte.
Ouvia em seu rádio de válvulas, programas sertanejos e sabia cantar todas as músicas, e ainda que ela não fosse muito popular entre os meninos, eu gostava muito dela.
A dona Augusta dobrava e costurava as roupas e sempre estava com frio, feito aquela senhora do desenho do Tom e Jerry, que usava meia grossa e chinelos.Sempre quando me lembro da dona Augusta, me vem a lembrança de Clementina de Jesus, a voz era a mesma, mas o olhar da dona Augusta era implacável, a voz dela gelava o coração e assim mesmo, a maior parte dos meninos amava essa mulher.
E eu???ela me chamava de neto.
Em 1975, no mês de Setembro, ocorreu um eclipse solar e, em São Paulo foi precedido de um temporal medonho.
Pra meu azar, eu estava de castigo, ajudando a dona Augusta.
Antes de escurecer o tempo ela já tinha falado de fim de mundo, os pedras de granizo se chocavam forte contra os vidros da janela, a dona Augusta ria, sua risada de quilombola, os raios iluminavam a escuridão e eram só 10:00 horas da manhã, a energia acabou, ela acendeu uma vela e a coisa piorou...
Levei uns 3 dias pra me recuperar do medo, mas não deixei de querê-la bem, por via das dúvidas, passei a evitá-la em dias de chuva.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Porque Cosme é meu amigo...


Na igreja católica, nessa data, comemora-se a festa dos santos que eram crianças e, em religiões de matriz africanas, faz-se o mesmo.
Lógico que tenho noção de que grande parte das pessoas que moraram na Casa da Infância, não são mais católicas.
Cabe a cada qual, seguir o que é do seu agrado e, longe de mim julgar a vontade alheia, a vida não me deu pedras, deu-me a tolerância.
A tolerância quem me deu mesmo, foram as freiras da Casa da Infância do Menino Jesus.
Puxando a memória, posso ver, misturados, véus brancos e turbantes, hábitos e batas, crucifixos e colares de contas...tudo isso na mesma cena.
Em dia de Cosme e Damião, as freiras se aprontavam com roupas de gala, os meninos vestiam a roupa da Liga e subiam na Kombi do seu Paulo e, na minha memória sempre vem o maior exemplo de tolerância religiosa da minha infância.
Num terreiro, que eu não me lembro o endereço, doces eram servidos aos meninos por filhas de santo gentis, enquanto o atabaque marcava o tom da festa.
Claro que os salgados e doces marcaram, porém, a coisa mais linda era o vento que trazia a primavera, que batia nos vestidos das mulheres presentes e, os panos brancos esvoaçavam iguais, mostrando que Deus é o mesmo, independente da religião que professem os seres de cores diferentes.

domingo, 28 de agosto de 2016

Quebra da ordem estabelecida.


Se acordava e entrava na fila da pia, seguia-se a fila para descer as escadas e tomar o café, entrava-se na fila para a classe, uma fila para o recreio...se seguia uma rotina de filas, até a hora de dormir.
Para tudo, se seguia em fila, uma ordem estabelecida sempre, muitos dos interno que foram para o Educa, ao se verem em campo aberto e livres das filas, se perderam.
Uns se retraíram, uns se expandiram, uns soltaram a franga e outros enlouqueceram mesmo.
Quando haviam os passeios, a rotina era quebrada e, ainda que em alguns deles se seguissem as filas, dava para se divertir.
Em 1974, quando se inaugurou a primeira linha de Metrô do Brasil, em quase todos os fins de semana, íamos para o centro e passeávamos nos trens de graça.
Os passeios da Casa da Infância, em geral, eram muito divertidos...haviam os programas de televisão ou as idas à Bertioga, quase não dava para as freiras ou as moças segurarem o ímpeto dos meninos, todas terminavam em sermão, por conta de algum guri que acabou se empolgado demais.
Haviam os passeios mais curtos, pelo bairro mesmo...tipo ir ao museu dos bichos, desse eu não gostava muito, bichos empalhados nunca me agradou, quando passeávamos no Instituto padre Chico, era uma festividade e o pessoal de lá, apesar da deficiência, tinham um astral muito bom.
Em algumas sextas-feiras, saíamos com a tia Herotildes e, cada qual com uma nota de 1 cruzeiro, tentava economizá-la ao máximo, isso fazia parte do aprendizado da terceira série.
Agora, o campeão de todos os passeios era mesmo o do Museu do Ipiranga, essas visitas me fizeram fanático por história.
Num desses passeios, vi quebradas todas as regras do rigoroso sistema das freiras.
Era sempre agradável percorrer a distância a pé, conosco estavam as madres Márcia e Brasil, além da moça Sonia.
Depois de constatar que o museu estava sofrendo reformas e não seria aberto ao público naquele dia, tiveram ideia de visitar a tia Cecília, professora da primeira série (minha madrinha), que morava na rua Bom Pastor.
A tia Cecília, que era filha de japoneses, nos recebeu de braços abertos e enquanto ela nos preparava pasteizinhos, ficamos assistindo "japan Pop Show" com o simpático Carvalho, marido dela.
No melhor da festa, as nuvens começaram a se carregar e, nos despedimos da professora, que morava na parte de cima da papelaria Carvalho e, como precisávamos andar acelerados, não carecia de fila.
Na verdade, entre as nuvens negras e o temporal, foram alguns poucos minutos e a gente havia percorrido alguns quarteirões, uns quatro.
Nos abrigamos no toldo de uma fábrica, era chuva de vento e assim mesmo estávamos nos molhando, uns 10 guris, as freiras e a moça.
De frente para a rua, pudemos ver que enquanto a chuva prosseguia, a água voltava e inundava a rua, uns quatro degraus acima do nível da rua, estávamos protegidos.
O tempo passava e nada de diminuir a chuva que caía em cântaros, o vento gelava e trazia mais água.
Na rua, um grupo de meninos que vinham das ruas de cima, só de calções, passaram a pular na piscina que a chuva havia formado, alguns vinham correndo no asfalto e se jogavam, espalhando as águas, chuva aumentava e o grupo crescia, garotos de variadas idades gritavam, um guri de uns quinze anos notou a nossa presença e, mesmo vendo os adultos, passou a nos chamar para a farra, fizemos sinal que não podíamos e ele insistiu em chamar.
A Sonia deu de ombros, a madre Márcia, que tinha olhos dum azul profundos, ficou tentada a autorizar, mesmo assim deixou a decisão para a madre Brasil.
Ah, deixar para a madre Brasil foi como dizer amém, ela disse:
_Tirem as camisas e os Congas e tomem cuidado.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

O silêncio velado.


Quando se acordava, bem cedo, ia-se ao lavatório e, ainda de pijamas, se escovava os dentes e se podia usar o banheiro, depois trocava-se a roupa e arrumava-se a cama.
Todo dia se seguia um ritual com horários marcados e seguidos à risca, uma rotina quase militar e, com efeito, militares mandavam na nação.
Nas paredes azulejadas do lavatório, as freiras costumavam colar figuras de pessoas ilustres e de grande relevância para a humanidade, por exemplo: ...os presidentes do Brasil e dos Estados Unidos, isso servia para atualizar os meninos, com relação ao mundo e, acabava mostrando que o mandatário do Brasil sempre exibia uma cara amarrada, enquanto o gringo sempre sorria.
Em 1974 a televisão mostrou, muito rapidamente, algo que acontecia em Portugal, algo relacionado com briga armada e cravos, uma reportagem só e não mais se falou no assunto, aquilo me deixou muito curioso e fui querer saber mais a respeito.
A madre Brasil, logo que a pergunta lhe bateu nos ouvidos, virou o rosto, assobiou uma cançãozinha e saiu, a Margarida que, estava no balcão da portaria, me mandou sair e por pouco não fez o sinal da cruz, a dona Augusta baixou o som do Vicente Celestino, velou grave a voz e, olhando em volta, sussurrou:
_Menino, deixa essas coisa do guverno em banho Maria, não cutuque a onça.
Entendi então que era um assunto proibido, nesses casos só havia uma solução, procurar uma patente superior.
O padre Zezinho almoçava todos os dias na salinha dos professores, bem ao lado da cozinha.
A Vovozinha fez-lhe o prato e me entregou, levei-o à mesa do padre e fiquei ao lado.
Assim que ele enfiou a primeira garfada na boca, tasquei a pergunta:
_Padre, o que é essa revolução dos cravos?
Engasgou, tossiu e pediu o copo com água, quando a vermelhidão passou, fez um relatório da história de Portugal com requintes de detalhes, desde a pré-história.
Boa alma, o padre Zezinho.